Upcycling: O encontro do Movimento Ballroom com a moda sustentável
- Débora Luz
- 30 de jul. de 2024
- 6 min de leitura
A Prisma bateu um papo com dois membros do Ballroom na Paraíba, a Danni Alves e o Jotape, e descobriu como a expressão artística e a resistência cultural do movimento se combinam, gerando práticas ambientalmente conscientes.
O movimento Ballroom (salão de baile), nascido nos Estados Unidos na década de 70, se destaca como um espaço de resistência e celebração para corpos historicamente marginalizados. Através da moda, da dança e da performance, seus participantes expressam sua identidade e desafiam os padrões sociais. No Brasil, o Ballroom vem ganhando força e se entrelaça com práticas sustentáveis. O “Upcycling” surge como instrumento da liberdade artística dos seus membros.
O que é “Upcycling” ?
O termo “upcycling”, ainda sem tradução para o português, foi cunhado inicialmente pelo ambientalista alemão Reine Pilz, em 1994, ao criticar o desperdício de resíduos em construções. Foi em 2002, com o lançamento do livro “Criar para Cuidar: Refazendo a maneira como fazemos as coisas”, escrito por William McDonough e Michael Braungart, que a palavra foi popularizada.
Na obra, os autores concordam com Pilz, afirmando a necessidade de evitar o desperdício de materiais que ainda possuem utilidade. Dessa forma, o upcycling é nada mais do que o processo de transformar diversos tipos de resíduos, dando um novo propósito a materiais que seriam descartados e evitando o impacto ambiental negativo de jogá-los fora. Atualmente, o conceito conquista diferentes modelos de negócios e comunidades, que adotam esses hábitos sustentáveis de produção para criar peças inovadoras.
Uma dessas comunidades é a “Ballroom”. Você já ouviu falar?

O movimento surgiu nos subúrbios novaiorquinos na década de 70, como um espaço artístico, político e social de resistência e acolhimento para pessoas historicamente marginalizadas (negros, latinos, periféricos e LGBTQIAPN+). A Ballroom se caracteriza por sua diversidade e acolhimento. Pessoas de diferentes origens, identidades e gêneros encontram nesse espaço um lugar para se expressar livremente, sem julgamentos. Jotape, designer de moda e membro da Ballroom em Campina Grande, na Paraíba, desde 2022, se apaixonou pelo coletivo por sua comunidade, assim como pela moda e representatividade, e por proporcionar um espaço para pessoas negras e trans se expressarem. O artista confessou como se sentiu após o seu primeiro contato com o movimento: “quando vi pela primeira vez pensei ‘Eu preciso disso! Eu quero isso para a minha vida!’, porque eu sempre gostei de moda, de me vestir diferente, de ter a minha própria identidade, e quando fui pela primeira vez pra Ballroom foi o que mais me encantou”.
Um dos pilares da Ballroom é a cultura das casas (ou “houses”), que, mais do que grupos, são verdadeiras famílias escolhidas. Nesses espaços, os membros encontram apoio, mentoria e um profundo senso de pertencimento. Cada casa possui um nome, sua própria história e hierarquia, geralmente lideradas por figuras maternas ou paternas que guiam seus filhos não só nas batalhas de performance (realizadas entre uma casa e outra), mas também na vida pessoal de cada um. Aqueles que não pertencem a nenhuma casa, mas são acolhidos pela cena Ballroom, são autointitulados “007”, que é o caso do Jotape.

A celebração da individualidade é um dos pilares da cultura Ballroom, incentivando cada pessoa a explorar sua própria estética e estilo. Através de categorias de competição nos desfiles, como “Vogue” (inspirada nas poses de modelos da revista homônima, compostas também por movimentos angulares e lineares de braços, pernas e tronco), “Fashion Killa" (criar roupas ousadas e inovadoras, desafiando expectativas dos jurados) e “Face” (avaliar as melhores feições do rosto de cada um), as “houses” e seus participantes competem e se divertem, sempre focando na criatividade e autenticidade. A construção das peças de roupa para as competições, em sua grande parte, são realizadas através de práticas sustentáveis.
Jotape e Danni Alves: união entre moda sustentável e cultura Ballroom
Danni Alves, designer de moda e filha da Casa das Bodegas na Ballroom, descobriu sua paixão pelo mundo fashion desde cedo, transformando peças antigas em novas criações. “Minha vida financeira e cotidiana me fizeram ver outras possibilidades do que a roupa poderia ser”, relata Danni.
Seu primeiro contato formal com a moda sustentável e o upcycling aconteceu em 2015, na faculdade de moda. Desde então, Danni tem se dedicado a aperfeiçoar suas técnicas e, juntamente com Jotape, faz parte do coletivo de pessoas que reaproveitam tecidos e outros materiais, com ações ecologicamente corretas, para criar peças únicas e inovadoras na Ballroom. Introduzida à comunidade por Dana, mãe da Casa das Perfeitas, Danni se apaixonou pelo ambiente inclusivo e vibrante das “balls”. "Minha primeira ball foi um choque. Que cultura é essa? Que família é essa? Eu quero participar dessa comunidade," lembra Alves.

A prática do upcycling está intrinsecamente ligada às origens do movimento Ballroom. Segundo Jotape, no começo do Ballroom, nos Estados Unidos, muitas pessoas, por não possuírem acesso às grifes, criavam suas próprias roupas para as competições, a partir de pedaços de tecido ou roupas antigas, desafiando a indústria da moda tradicional. “As pessoas se viravam, pegavam um pedaço de tecido e faziam como se estivessem vestindo uma Balenciaga, uma Gucci... Elas sustentavam isso e traziam elegância, o modo de vestir, pareciam realmente estar usando grife”, afirma Jotape. Danni Alves complementa essa visão, destacando que a maioria da Ballroom adere ao upcycling: "A reutilização de peças é uma prática comum e incentivada".

Jotape aprendeu a costurar com sua avó, criando roupas a partir de retalhos e tecidos comprados juntos. "Essa prática de upcycling me permite criar peças exclusivas e sustentáveis", comenta Jotape. Ele menciona figuras que lhe são importantes na cena Ballroom, como Dorot Ruane e Bruxe, duas grandes influências em sua vida e trabalho. Danni Alves, por sua vez, utiliza frequentemente a técnica do patchwork, um trabalho feito com retalhos de roupas, criando peças únicas a partir de tecidos descartados. "É como se fosse uma colagem. Você vai juntando as pecinhas e automaticamente dando uma outra forma para elas", explica.
Ambos encontram na Ballroom o espaço perfeito para inovar e inspirar, sempre com um olhar atento para a sustentabilidade e a possibilidade de aproveitar as peças ao máximo. Uma calça pode virar uma blusa, uma blusa torna-se uma bolsa, e por aí vai. O importante é focar no mínimo de desperdício de material possível, valorizando a diversidade de peças que podem ser criadas.
Essas roupas são geralmente encomendadas por pessoas de fora e dentro da Ballroom, alimentando um mercado interno de produção de roupas que são feitas através do upcycling. Jotape descreve a sensação de ver outras pessoas usando suas criações como gratificante. "Para mim, a moda é se sentir bem e passar sua identidade, além de ser uma forma de militância e expressão política", conclui.
Para Danni, a moda vai além da estética; é uma forma de expressão política e identidade. "Moda é muito política. O que você veste, você transmite", afirma. Sua marca, Alves DNA, é um reflexo dessa filosofia, oferecendo peças únicas que carregam a história e a identidade de quem as usa. "Eu acredito muito que todo mundo tem o seu DNA único, a sua identidade única", diz Danni.
As experiências de Jotape e Danni Alves exemplificam como a moda sustentável e o upcycling podem ser grandes instrumentos de expressão pessoal. No ambiente inclusivo da Ballroom, eles encontram o espaço ideal para continuar inovando e inspirando uns aos outros dentro da comunidade.
A Ballroom e a moda sustentável se entrelaçam numa relação complexa, histórica e inspiradora. Através da reutilização de materiais e da criação de peças únicas, seus membros não só desafiam a indústria da moda tradicional, como também promovem uma mensagem de sustentabilidade e autenticidade. O upcycling, como exemplificado pelos entrevistados, mostra que a moda pode ser inclusiva, ecológica e profundamente pessoal, refletindo a identidade e as lutas de quem a cria e a usa.

CONHEÇA NOSSOS ENTREVISTADOS:
Designer de moda e filha da Casa das Bodegas. Começou a fazer e refazer roupas desde a infância e, em 2015, durante a faculdade de moda, descobriu que o que ela fazia já tinha nome: upcycling. Inspirando-se na sustentabilidade, na moda como forma de expressão e na comunidade Ballroom, oferece peças únicas e personalizadas com a sua marca AlvesDNA. Ganhou prêmios em categorias regionais como Fashion Killer e Best Dressed por dois anos consecutivos. Participou da Celebration Ball em São Paulo e ganhou na categoria Fashion Killer.
“Ballroom é comprometimento, é família, é união”
Designer de moda e membro da comunidade Ballroom desde outubro de 2022. Começou a se interessar por moda na infância, incentivado por sua avó. Utilizando do upcycling para criar roupas únicas e sustentáveis, Jotapê faz sucesso com suas peças, sendo reconhecidas dentro e fora da comunidade Ballroom pelo seu estilo próprio. Sua marca, a ByJot4p, é construída através da expressão da sua identidade. Utiliza materiais reciclados e retalhos para criar peças únicas e sustentáveis, dando grande valor à carga afetiva das peças que produz e tem como objetivo inspirar outras pessoas a se expressarem também através da moda.
"Pra mim, assim, a moda é isso. Você se sentir bem com que você está vestindo, você conseguir passar a sua identidade."
Esse texto é um trabalho de Débora Luz, escritora convidada para o projeto "prisma vol. 2".
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