Amêndoas: a adolescência é um monstro, e todos somos engolidos por ela
- Juliana Andrade
- 29 de set. de 2023
- 8 min de leitura
Atualizado: 15 de mai. de 2024
Crítica
“Esta história é, em resumo, sobre um monstro encontrando outro monstro. Um dos monstros sou eu.”
A vastidão do corpo humano faz com que nós prestemos atenção somente às coisas grandes. Por exemplo, se você sente uma dor nas costas, uma ida à farmácia pode resolver. Assim como um beliscão nos músculos ou uma pontada aguda na cabeça. Pernas, braços, tronco e cabeça. Essas grandes partes, quando sofrem, pedem ajuda, e nós percebemos. As pequenas partes, entretanto, raramente pedem. E quando vem, de supetão, um sinal de que algo está errado, boa parte das vezes já é tarde demais para consertar, e uma ida à farmácia pode se tornar somente uma viagem perdida.
“Amêndoas” é um livro de ficção coreana, escrito por Won-pyung Sohn e lançado este ano no Brasil pela editora Rocco. Há 6 anos atrás, na primavera, a autora entregou a história do adolescente Yunjae ao mundo e deu início ao bater das asas de uma borboleta que me permitiu escrever, hoje, sobre a minha leitura.
Dentro dos nossos cérebros, nas profundidades do lobo temporal, existe um grupo de neurônios em formato de amêndoas que processa as emoções humanas. Partes tão pequenas de nós, que se responsabilizam pela forma como nos relacionamos individualmente e em sociedade, auxiliam a sermos quem somos. Yunjae, personagem principal de “Amêndoas”, nasceu com uma condição neurológica chamada Alexitimia, que dificulta seu processamento e entendimento de emoções como medo, tristeza, desejo ou raiva. As amêndoas dentro dele não cresceram como a sua, que lê esse texto, nem como a minha, que o escrevo. A partir da primeira página até a última, entramos dentro do cérebro de Yunjae e temos uma visão, em primeira pessoa, de como é ser, viver e não sentir.
Quando criança, sua mãe notava comportamentos que poderiam ser mascarados como coisas da idade. Yunjae não demonstrava interesse por brincadeiras nem reagia a estímulos comuns com a emoção típica de alguém que está iniciando a vida. Ela nunca viu o filho sorrir, e depois de um tempo foi inevitável não questionar o porquê. Idas ao médico e noites de choro deram uma conclusão triste à mãe de Yunjae e traçaram sua vida: Yunjae não consegue compreender o que é sorrir, nem pode sorrir com os próprios dentes de forma espontânea. Grita de dor, sim, mas somente quando uma panela de água quente cai no seu corpo, e o medo do calor não existe, porque foi ele mesmo quem puxou a panela contra si. A tristeza existe nos olhos de sua mãe e não chega até os seus, porque Yunjae não consegue diferenciar melancolia de culpa ou uma vida infeliz de um destino pior ainda.
Em determinada parte de sua infância, a mãe dele percebe que não conseguirá cuidar de Yunjae sozinha e volta com uma bagagem cheia de arrependimentos para reencontrar a própria mãe, avó de Yunjae. Uma senhora forte, marcada pelo tempo, que é dura e amorosa, da sua forma, e aceita a filha e o neto de braços fechados, como esperado, mas com um sorriso no rosto.
A primeira vez que Yunjae é chamado de monstro é por sua avó. Ela diz que sua monstruosidade é a mais adorável, porém isso só faz com que ele se pergunte como uma palavra tão negativa quanto “monstro” pode ser associada a qualquer adjetivo bom. A segunda vez que é chamado dessa forma é na escola. Assim como na terceira, quarta, quinta e as dezenas outras vezes. Fora do alcance de sua avó, Yunjae é um monstro horrendo, que não tem dentes afiados e nem assusta ninguém com sua cara feia. Seu jeito quieto e expressão sempre impassível são suficientes para afastar as outras pessoas. De repente, Yunjae é tão pequeno quanto uma amêndoa no meio da multidão, e nós estamos junto a ele, feito cúmplices de uma violência que parte de um lugar maior ainda do que somente o medo daquilo que é diferente.
Qualquer pessoa que consuma mídia coreana como forma de entretenimento constante pode dizer algo, nem que seja breve, sobre a relação do país com o bullying. Seja ele escolar ou no ambiente de trabalho, é raro encontrar um cidadão sul-coreano que não tenha sofrido ou, no pior dos casos, praticado. É um problema enraizado na cultura extremamente hierárquica do país, tão grande que reflete na taxa de suicídio, uma das mais altas entre os países do mundo. Uma crise herdada entre gerações que se agravou mais ainda na geração Z, com jovens inseridos em uma massa de informação e pressionados a se tornarem tudo aquilo que seus pais não puderam ser. A busca pela perfeição entre os coreanos impulsionou a popularidade do K-pop, por exemplo, transformando pessoas comuns em idols através de beleza e talento. Os jovens se afundaram ainda mais no reflexo de algo inalcançável, e o peso da frustração pode ser, muitas vezes, demais para aguentar.
Por muitos anos, debater bullying era algo impensável dentro do país. As poucas pessoas, influentes ou não, que se arriscavam a abordar o assunto eram silenciadas pelos próprios cidadãos, em busca da manutenção do status de vida perfeita para todos. Agora, com taxas de suícidio assustadoras, escalas de trabalho questionadas o tempo todo e uma geração de jovens cada vez mais desanimados com o futuro, a Coreia do Sul é forçada a encarar uma verdade dura: ninguém é de ferro. Através da mídia, produzindo doramas que abordam essa temática, escrevendo livros que desafiam o padrão estabelecido e dando aos idols o direito de se expressar enquanto pessoas, discute-se cada vez mais sobre saúde mental, no mundo todo.
Quando Won-pyung Sohn escreveu “Amêndoas”, a conversa sobre saúde mental não era um fervor entre os coreanos, muito menos era comum abordá-la através da visão de um adolescente neurodivergente. Este foi seu livro debut e com a sua estreia, a autora pode levantar muitos questionamentos dentro da sociedade coreana, guiada pelo sucesso de vendas. Além de utilizar do seu talento para nos inserir em uma história profunda e comovente, ela também discorre sobre um tema extremamente relevante, de 2013, quando fez o primeiro rascunho de Yunjae, até hoje. É essa a maior virtude dos livros, na minha opinião. A oportunidade imensa que existe de mover pessoas, causar discussões e, de uma forma ou outra, promover mudança.
Após uma tragédia acontecer em sua vida, Yunjae é forçado a encarar os próprios pés, seu reflexo no espelho, quem ele é e quais passos dará a partir dali. Quando tudo acontece, ele está iniciando a adolescência propriamente dita, ou seja, o momento em que fazemos amigos, conhecemos pessoas, nos preocupamos com coisas que não são faculdade e emprego e sentimos. Tudo. O mundo ao nosso redor. Os outros. Nós mesmos.
Yunjae, perdido entre todos esses conceitos, não sabe para onde ir.
O que fazer quando não se tem ninguém? Como agir quando toda a sua ideia de si vem de outras pessoas? Quem é você quando não é você mesmo? Quem seria você se não sentisse nada?
É quando Yunjae conhece Gon.
Gon é magricela, mal educado, um menino esquisito que mais parece um animal selvagem. Yunjae o encontra primeiro na escola e depois o revê em um funeral. Duas tragédias particulares, duas histórias diferentes que se cruzaram e seguiram em linha reta. Vez ou outra, paralelos. Na maioria das vezes, entretanto, Gon e Yunjae são retas concorrentes, se encontrando em diversos pontos, e cabe a nós percebemos os momentos em que ambos se cruzam durante o livro.
No começo, Gon procurava Yunjae para perturbá-lo, vendo o outro menino como um alvo fácil pelo seu jeito caladão. Ao perceber que ele não revidava nenhuma de suas investidas, Gon se aproximou ainda mais, motivado pela curiosidade de ver até onde Yunjae era capaz de ir nesse jogo triste de gato e rato. Ao longo do livro, os papeis se misturam e não conseguimos dizer com certeza quem é a vítima e quem é o violentador. Um monstro encontra o outro. Do lado de fora, podemos enxergar um monstro bem maior, que engole não somente Gon, Yunjae e todos os outros personagens do livro que contam presença na tragédia. A adolescência é, para todos nós, um monstro. Todos somos engolidos por ela.
Na parte de trás do meu exemplar do livro, há uma review de uma revista famosa que diz que o mergulho de “Amêndoas” nas profundezas da condição humana é feito com muito humor, mas não lembro de rir uma vez sequer durante a leitura. Os capítulos curtos dão a sensação de que as páginas estão passando mais rápido, e quando terminei o livro, depois de três horas, tive a sensação de que um longo tempo tinha se passado, porque as emoções dentro de mim afloraram logo nas primeiras páginas e me seguiram até o último ponto final. A vontade que fica é a mesma que temos quando nos apegamos a um personagem fictício, um sentimento bobo de querer ajudar quem não existe realmente. Nesse caso, eu desejei ser parte do universo de Yunjae e Gon, alguém que pudesse ajudá-los a passar por momentos difíceis. Pensar isso me fez lembrar da minha própria adolescência e da sensação familiar de não pertencimento.
Yunjae se aproxima de Gon porque percebe que não pertence a lugar algum nesse mundo. Não se sente mais conectado à mãe nem à avó, mesmo que as ame muito, nem à livraria que herdou de ambas. O cheiro dos livros não lhe traz conforto e o amor que sente pela sua família é tão abstrato quanto qualquer ideia de apego, porque no fim do dia Yunjae ainda não sente nenhuma dessas coisas. Ele acredita que é alguém azarado, cheio de azar. Nasceu assim. Imerso na falta de sorte que inunda a sua vida, Yunjae decide, então, que quer entender as outras pessoas, apesar de tudo, e é entendendo alguém complexo e cheio de cicatrizes como Gon que ele poderá entender também quem é a pessoa que o encara de volta no espelho.
Gon é seu completo oposto. Tem maldade e mágoa nele. Raiva e tristeza coexistindo em um espaço apertado, tão claustrofóbico que o faz chorar. Yunjae, aos poucos, passa a admirar o lado ruim de Gon, fascinado pela capacidade que o menino tem de sentir tudo em sua vida ao máximo, para o bem ou para o mal. A jornada de autodescoberta de Yunjae é solitária, mesmo que haja pessoas ao seu redor para apoiá-lo. Entre desentendimentos, revistas velhas e vestígios do que um dia foi uma borboleta em seu esplendor, Yunjae e Gon formam uma amizade inesperada, incalculada e, com toda certeza, estranha.
Esse não é um livro sobre a psique humana, nem de longe. Não é uma abordagem complexa sobre a Alexitimia nem sobre doenças mentais. É mais como um pedaço da vida, um episódio da adolescência, o crescimento de um garoto com o passar das estações. Filmes e livros coming of age são mais conhecidos se feitos em inglês, mas “Amêndoas" é um ótimo exemplo dessa categoria, que é favorita no meu coração. Mesmo que não seja americano, está alcançando reconhecimento aos poucos, e é merecido.
A avó de Yunjae, respondendo a uma dúvida do neto, diz que amar é descobrir a beleza. Com a chegada da idade, Yunjae decide cobrir-se de beleza, mesmo sem entender o que é o amor. Descobrir Gon, a princípio, é o que lhe motiva. As coisas que ele encontra pelo caminho fazem parte da vida. É como a vida é.
Sua busca pelo ser encontra fim em uma conclusão agridoce. “Amêndoas” se encerra como uma história que ressoa no ar, que forma espirais no vento e volta com força total até o leitor. “Crescer significa mudar?” é a última pergunta que Yunjae faz a um dos personagens, a nós que estamos lendo. “Para melhor ou para pior” é a resposta. Sinto que Yunjae cresceu, assim como eu.
Olhar para trás e ver quem fomos é sempre melancólico. Olhar para frente e não saber quem seremos também. Sentir é sempre muito complicado, crescer é mais ainda. O que nos resta é olhar para o infinito potencial que temos agora, encarar o monstro e ser encarado de volta. Descobrir a beleza.
UAU! Só de ler a resenha eu já tô completamente desnorteada. Foi de tirar o fôlego. PRECISO ler esse livro.
Eu tô chorando e eu ainda nem li