Corpo desfeito: Entre a devoção e o sofrimento
- Ana Carolina Barreto
- 9 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
Em seu romance de estreia, Jarid Arraes narra uma história impactante sobre os efeitos do abuso físico e psicológico em crianças.
De acordo com o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, foram registrados 22.527 casos de violência contra crianças e adolescentes no Brasil, com vítimas entre 0 e 17 anos de idade. O número assustador ilustra que a negligência contra menores de idade é mais comum do que se imagina, e as sequelas permeiam a longo prazo. Segundo o Ministério da Saúde, a violência infantil pode causar problemas psicológicos, emocionais, cognitivos e sociais.

Em paralelo com a dura realidade, o romance “Corpo desfeito” de Jarid Arraes entrelaça o número da assustadora estatística com a história de uma família do interior do Ceará. As páginas dão espaço para uma sequência dolorosa de abusos: avó, mãe e neta estão presas em um ciclo de indiligência e violência.
Através dos olhos de Amanda, o leitor conhece a dinâmica de sua família e seu cotidiano moldado pelos costumes geracionais. De antemão, Amanda relata que sua mãe precisou escolher entre a gravidez e o ensino médio, sendo rotulada pelo avô como alguém “incapaz de fechar as pernas”. Desde que era apenas uma ideia frágil e mal formada, Amanda precisou lidar com o fato de não ser bem-vinda. A gravidez, no entanto, foi a tentativa de autoafirmação de sua mãe, que com o abandono paterno da menina e o descontentamento de sua família, decidiu dar uma chance à vida.
Apesar da casa rígida, o pilar da família é a mãe de Amanda. O sustento da casa sempre foi gerado através de seu trabalho, apesar de pouco remunerado devido a falta de estudos eoportunidades no interior. Desde cedo, Amanda se acostumou com a exaustão de sua mãe, e ser encontrada dormindo quando ela voltasse do trabalho não era uma opção. Seguindo uma rotina meticulosa, Amanda só se permite dormir quando sua mãe chega em casa, acordando apenas quando ela também se levanta. Em gestos simples, a pré-adolescente demonstra que compartilhar o cansaço de sua mãe é a única maneira de tê-la por perto, ainda que por um breve momento.
A virada de chave acontece em seu aniversário de 12 anos. Pela primeira vez, Amanda teria um bolo de aniversário. Sua mãe, ainda, presenteia Amanda com uma boneca Susi Vai ao Petshop, um gesto que sua avó, conhecida por sua rigidez e devoção ao catolicismo, não hesita em criticar. Para ela, as roupas curtas e a maquiagem da boneca eram completamente impróprias. Pouco a pouco, a figura forte e dominante de sua avó se destaca na narrativa, tornando-se ainda mais marcante quando a mãe de Amanda é morta abruptamente no caminho para casa, enquanto levava o primeiro bolo de aniversário de sua filha nos braços.
Esse momento marca o início de uma sucessão de tragédias na vida de Amanda. O luto ainda fresco pela perda de sua mãe logo se transforma em outra dor com a morte de seu avô. Amanda se vê apenas com sua avó, e a menina que costumava sofrer os castigos somente em dias estrategicamente escolhidos, para que sua mãe não percebesse os machucados no final de semana, passa a viver um verdadeiro inferno na terra.
À medida que o tempo passa, a avó de Amanda vai, gradativamente, restringindo as coisas básicas da vida da menina. Além de impor uma rotina de orações rigorosa, pequenos luxos que antes eram parte do cotidiano de Amanda desaparecem: shampoo, condicionador, roupas que não atendiam ao padrão de modéstia, a boneca presenteada por sua mãe, sua antiga escola e até mesmo a energia elétrica dentro de casa.
A motivação por trás desse controle é evidente: a avó de Amanda acredita que a devoção a Deus deve superar qualquer apego a coisas materiais. E caso Amanda desobedeça a autoridade da casa, uma surra a aguarda. Entre tapas e insultos, a menina faz súplicas à imagem santificada de sua mãe, uma representação sacralizada encomendada por sua avó, que tem o rosto da filha falecida e é cultuada diariamente. No entanto, para a angústia de Amanda, suas preces não são ouvidas pela divindade que tanto buscava.
Nas 120 páginas, são retratados os mais diversos tormentos vividos por alguém em situação de violência, sofrimentos esses que são moldados por ideais enraizados no fanatismo religioso. Amanda não sofre apenas as consequências da violência impelida por sua avó, como também enfrenta a ausência e omissão de assistência por parte daqueles que presenciam tudo.
Sobretudo, ao seguir a vida conforme ditada por sua avó, Amanda, que antes era limitada pelos recursos escassos de sua realidade, começa a perceber que as restrições que a aprisionavam eram, na verdade, reflexos da própria maldade e de um egoísmo camuflado em piedade, provenientes de quem ela acreditava querer o seu bem.
Como Amanda poderia sequer questionar? Sua avó, uma fonte de conhecimento, deve estar sempre certa. Como ela poderia desafiar os ensinamentos da avó, que afirma veemente sobre os santos exigirem que vivam sem espelhos dentro de casa? O oculto é difícil de ser questionado, e a influência histórica dessas figuras é muito mais profunda do que Amanda consegue compreender. Talvez por isso seja mais fácil apenas obedecer do que questionar. O fomento acontece dessa forma: você precisa acatar, caso contrário, será punido com o castigo divino.
Apesar do tema complexo e delicado, a escrita e o desenvolvimento do livro cativam quem o lê. Com muita originalidade, Jarid Arraes nos dá um soco no estômago. Ao acompanhar o conflito da família, no lugar de leitora, me perguntava o tempo todo o motivo de tanto sofrimento e sadismo contra uma criança, e a resposta nunca vinha; a verdade é que ela não existe.
Ao explorar o poder da religião e a cegueira que vem acompanhada ao fanatismo, Arraes desafia as normas sociais que sugerem que a fé e a devoção, em última análise, existem para um bem maior — mesmo que esse bem não se aplique àqueles que estão ao seu redor. Para Amanda, a maior recompensa que poderia obter ao se inibir do mundo é a promessa de ir para o céu. É reencontrar sua mãe que agora tornou-se uma santa. É satisfazer uma figura divina que não alivia sua carga na terra e não escuta seu sofrimento, que perdurava por mais tempo do que deveria.
“Onde estava a ideia infantil de que eu poderia ter coragem? Não tinha sequer um impulso. Eu tinha vergonha das consequências. Era isso que me mantinha viva, o medo das consequências.”

A autora dedica o primeiro livro aos que foram desfeitos, assim como Amanda, mas garante que apesar de todas as turbulências enfrentadas pela menina, ainda há esperança. E se revoltar, antes de ser um ato de rebeldia, é um ato de coragem.
Esse texto é um trabalho de Ana Carolina Barreto, escritora convidada para o projeto "prisma vol.2".
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