As nuances do abuso e das relações humanas em “Bebê Rena”
- Juliana Andrade
- 27 de abr. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de mai. de 2024
Bebê Rena, nova minissérie britânica da Netflix, é um relato em primeira pessoa diferente e perturbador sobre relações humanas, stalking, abuso e superação.

A expressão “dar uma colher de chá” refere-se ao ato de ajudar alguém, facilitar uma ação. Em “Bebê Rena”, nova minissérie britânica da Netflix, Donny desencadeia uma série de eventos inesperados e perturbadores ao oferecer um pouco mais do que isso, um copo de chá, a Martha, uma mulher triste que aparece no bar em que ele trabalha.
Narrado em primeira pessoa, “Bebê Rena” é um respiro de criatividade em meio a produções banais e previsíveis, cada vez mais produzidas pelo serviço de streaming. Seguindo a onda de outras séries meio comédia, meio drama, com traços autobiográficos, como as aclamadas Fleabag de Phoebe Waller-Bridge e I May Destroy You de Michaela Coel, em que comediantes se colocam na posição de roteiristas e protagonistas das suas obras, “Bebê Rena” também traz um relato pessoal para os espectadores, mesclando seu desenvolvimento entre cenas dignas de um thriller e outros momentos de alívio cômico, com a presença constante de um fio fino de tensão no ar, que nos deixa sempre a espera do pior.
No início da sua carreira, quando ainda era pouco conhecido no meio e enfrentava um período difícil na própria vida, o comediante Richard Gadd foi vítima de uma stalker, responsável por dar a ele o apelido que nomeia a série e por enviá-lo mais de 41 mil e-mails, além de persegui-lo por ligações e centenas de mensagens em redes sociais. Ao vermos a atuação da talentosíssima Jessica Gunning, que constrói uma personagem emocionalmente perturbada e intrinsecamente humana ao longo de sete episódios, é difícil imaginar uma situação desse tipo ocorrendo além das telas, mas o chamado stalking, ato de perturbar ou perseguir alguém, é mais comum do que imaginamos, e é considerado crime no Brasil segundo a lei 14.132/2021.
Antes de se tornar um projeto da Netflix, “Bebê Rena” já existia como uma peça de comédia do autor, e foi através desse sucesso que surgiu a adaptação. Segundo Richard, sua proposta, ao contar sua experiência traumática, era se aprofundar no crime de stalking como resultado de distúrbios mentais sofridos pelos seus perpetuadores. É comum vermos stalkers representados na mídia como figuras sensuais, geralmente homens que stalkeiam mulheres indefesas por interesse sexual, mas em muitos casos, a obsessão do stalker parte de um lugar muito mais profundo do que apenas desejo. Na maioria das vezes, a vítima se torna o escape que o stalker encontra para a miséria da própria vida, em busca de algo que supra uma necessidade insaciável que existe dentro de si.
Martha, na série, é uma mulher refém da vida que tem, presa em um corpo que não a agrada e vítima do julgamento da sociedade por ter falhado na tentativa de alcançar muitas coisas. Ao encontrar Donny, ela é surpreendida pela sua gentileza em oferecer um copo de chá para consolá-la e o mero ato é suficiente para destravar sua obsessão por ele. O que começa com conversas inofensivas em idas ao bar logo se torna perseguições diárias até a casa de Donny e posteriormente ameaças contra seus entes queridos, comportamentos obsessivos refletidos em mensagens de texto que nos fazem gelar a espinha com um simples “sent from my Iphone”.
Em todos os momentos, enxergamos o quão miserável é a vida que Martha leva e as nuances dos seus próprios traumas nos faz ter um pouco mais de compaixão pela personagem, mesmo em sua estranheza. Richard diz que, ao escrevê-la e também colocar-se como intérprete na história, não quis polarizar a narrativa em vilã e mocinho, mas sim mostrar que há sempre dois lados para a mesma moeda. Como Martha, ele também tinha diversas partes de si do qual não se orgulhava, assim, a existência constante de sua stalker se tornou um bel-prazer, algo que amaciava seu ego por poder ouvir, através da apreciação dela, o que mais precisava naquele momento. Quanto mais é importunado pelas investidas dela, mais Donny se aprofunda na insanidade alheia e na sua própria loucura também. Rapidamente, a obsessão se torna mútua, e é cada vez mais difícil apontarmos quem é certo ou errado, utilizando os ponteiros de uma bússola moral que não para de girar.
A trama de stalking serve de base para o desenvolvimento de outros traumas que o autor sofreu na época, fazendo com que a série aborde outros temas ao passar dos episódios. Questões sobre abuso sexual, homofobia e masculinidade também são abordadas, e é a partir da interpolação dessas experiências de Donny que podemos nos aproximar do personagem e entender mais de onde vem as suas motivações moralmente dúbias. No clímax da série, somos colocados frente a frente com Donny, ou talvez com o próprio Richard Gadd, e podemos enxergar, em um espaço quase claustrofóbico, que suas escolhas partiram de um sentimento identificável de ódio a si mesmo.
“Bebê Rena” é uma jornada tensa, angustiante e violenta. Seus momentos de comédia são secos, não têm a real intenção de fazer rir, e a tensão da história principal nunca se dissipa. Ao invés disso, apenas se amplifica, em tom e força, à medida que novos pesos são adicionados à balança e novas situações desagradáveis são apresentadas.

Mesmo que Richard admita ter adaptado sua experiência com um tom maior nos elementos de suspense, a fim de expandir esse pedaço da sua vida para que a história da Netflix fosse mais coesa, ainda é perturbador se imaginar no seu lugar. Através dos constantes e-mails, o espectador é colocado na posição de vítima também, e tudo se desencadeia na frente dos nossos olhos com a simplicidade de um drama criativo, incômodo e desconcertante.
Ao fim, somos deixados com uma faca de dois gumes nas mãos. Definitivamente, “Bebê Rena” não é uma história para todos os públicos, mas sua posição no top 10 do streaming pode sugerir algo bom, e é uma ótima minissérie para fugir do mar de mais do mesmo na plataforma. Muito além da sua premissa óbvia, é um relato sobre superação de traumas e uma abordagem singular sobre todas as possibilidades inconstantes que existem em ser humano.
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