Photocards de k-pop: como uma subcultura movimenta toda uma indústria – e algumas pessoas dentro dela
- Juliana Andrade e Martha Tilza
- 24 de ago. de 2024
- 11 min de leitura
“Da cultura de fã à comunidades de coleção, a Prisma conversou com duas colecionadoras para conhecer um pouco mais sobre esses pedacinhos de papel e por que eles significam muito além disso para muitas pessoas.”
Pouco a pouco, o k-pop se construiu para além dos territórios coreanos com sua sonoridade inovadora, carregado de uma estética visual marcante, e espalhou outras formas de enxergar a música – e sua indústria – para o mundo inteiro. É quase impossível não notar os impactos que esse gênero musical trouxe para o cenário do já defasado pop ocidental, por exemplo, e sua influência se estende a muito além de batidas e refrões.
Como uma indústria operante e grande responsável pela maior parte da economia da Coreia do Sul, o k-pop tem uma forma particular de lidar com os produtos de seus artistas e se arrisca para fora do padrão que conhecemos de discos, CDs e DVDs. Os álbuns físicos, comercializados junto ao lançamento das músicas no streaming, incluem diversos itens, em um conjunto arrojado de design e criatividade, tais quais CDs, livros de letras, pôsteres, polaroids e os famosos “photocards”. Assim chamados, essas fotos dos “idols” são itens colecionáveis exclusivos de cada álbum e despertam a paixão de muitos fãs, a ponto de ter criado, gradualmente, uma comunidade gigantesca de colecionadores em busca de partilhar suas coleções e experiências.
A Prisma bateu um papo com duas fãs, Lívia e Leila, a fim de entender um pouco mais das suas coleções, o sentimento de pertencimento que fazer parte de uma comunidade como essa traz e por que esses “photocards” significam bem mais do que apenas fotos em um pedacinho de papel.
“Eu sempre fui fã de coisas, então antes de colecionar coisas de k-pop, eu também colecionava CDs de artistas que eu gostava. Só que eram CDs normais, assim, então veio de uma coisa que eu já gostava muito, de colecionar coisas."

Lívia Carvalho, de 25 anos, mora em Minas Gerais e coleciona álbuns desde 2019. O que começou como pilhas de livros numa estante e cartinhas recebidas de amigas na infância e guardadas até hoje logo se mesclou, na vida adulta, a uma grande coleção de k-pop. O gosto por guardar lembranças e manter coisas que remetem a momentos bons são traços que fazem parte de quem Lívia é e segundo ela, ter vontade de colecionar photocards e outros itens dos seus grupos favoritos, Seventeen e NCT, foi algo natural: “Acho que à medida que você vai acompanhando os grupos e vai vendo as coisas, essa vontade de ter a experiência de comprar um álbum e ver alguma coisa que vem dentro disso vai aumentando, então acho que isso que me despertou muito.”
Leila Oliveira é paulistana, tem 26 anos, é fã dos grupos ACE, CIX e RIIZE e começou a colecionar photocards ao mesmo tempo que Lívia. Ambas dividem a paixão não somente pela música, mas pelo ato de se dedicar às coisas das quais são fãs: “Desde que eu me entendo por gente, eu sempre fui fangirl.” Por meio de uma amiga próxima, que curtia muito k-pop, Leila pode conhecer a música e posteriormente o mundo das coleções. Ela, que já colecionava CDs, também foi atraída de uma forma natural: “Vem o photocard dentro do álbum e por curiosidade eu acabei entrando em um grupo de vendas de álbuns e nisso eu via as pessoas fazendo trocas, vendas e foi tudo muito interessante porque eu não sabia que existia essa comunidade de photocards.”

Os photocards de um álbum sempre variam de acordo com a temática do comeback, termo dado ao período em que um grupo lança um trabalho novo, e a diversidade de fotos é o que mais chama atenção dos fãs. Há quem colecione apenas photocards regulares, ou seja, aqueles que são recebidos junto aos álbuns, assim como alguns colecionadores preferem investir em irregulares, cards exclusivos de eventos, versões de álbuns específicas ou merchs feitas pelo grupo. Assim, as coleções se tornam muito particulares e a forma como o fã trata e organiza sua coleção depende diretamente das prioridades que ele estabelece.
Dentro dessa comunidade, para a grande maioria, o ato de reunir esses itens é mais do que apenas um hobby ou uma forma de passar o tempo e se transfigura em uma parte terapêutica da vida. Para Lívia, colecionar é uma terapia, mas às vezes ela não consegue evitar pensar que também é necessário muito controle, financeiro e emocional, para alcançar esse estado e não cair em neuras da própria comunidade, que cria uma competição em torno de quem tem mais coisas. “Acho que esse hobby pode se perder pra algumas pessoas, sabe? E virar algo muito de dependência e competitividade. Às vezes, a gente vê umas coisas no Twitter que dá essa impressão. Mas aí é também o tanto que você é afetado pelo Twitter, só que isso já é assunto pra outro momento.”
“Eu gosto de imaginar que pra todos é um hobby, sabe? É uma coisa gostosa que eu gosto de fazer.”
Já Leila se vê no meio desses dois extremos. Segundo ela, o hobby é ir atrás dos photocards que mais quer, comprar e esperar até o dia de recebê-los. Dedicar seu tempo a isso. Por outro lado, ela diz: “A parte terapêutica é, por exemplo, várias kpoppers se juntam e levam seus photocards para passear e ter essa culturazinha, colocar dentro de um cardholder…. então essa parte para mim é terapêutica. Comprar toploader e adesivo, decorar o toploader. Depois que o photocard chega na sua mão, o pós, é realmente terapêutico.”
Para quem não faz parte ou nunca teve contato com essa outra face de ser fã, as nomenclaturas e especificidades podem parecer confusas, mas o mundo dos photocards funciona como um negócio de troca e venda comum, com a diferença de ser feito de fã para fã, mais informal, mas não menos sério ou empenhado. As vendas podem ser feitas de forma direta entre duas pessoas ou por meio de CEGs, sigla para Compra em Grupo, em que GOMs (do inglês Group Order Manager) são as pessoas responsáveis pela organização. Comprados em terras nacionais ou internacionais, os photocards podem exigir certos cuidados de manutenção, que assim como as coleções, são muito particulares de cada fã; alguns são mais criteriosos na forma de guardar, outros preferem tratar a coleção como algo casual.
Tanto Leila quanto Lívia têm seus próprios cuidados quando o assunto são suas coleções. Ambas utilizam itens para proteção dos photocards, evitando arranhões ou avarias, como sleeves de plástico, e guardam todos eles em livros chamados de binders, semelhantes à fichários, mas com bolsos também de material plástico para armazenar os cards. Para Lívia, em especial, seus álbuns e photocards devem estar sempre visíveis, ao seu alcance: “Eu gosto de humanizar. Mas eu acho a minha experiência com álbum mais tocável, algo que eu quero ir lá ver, eu vejo. Não tenho muita frescura, digamos assim. Então acho que a coleção, pra mim, também significa as minhas memórias vivas, onde eu consiga ver. Esse é o meu cuidado e carinho com elas.”

Um dos tópicos citados pelas meninas durante a entrevista à Prisma é o investimento que colecionar algo demanda, além do tempo gasto no momento de procura dos photocards e o período ainda maior até que eles cheguem até suas casas.
Ainda que o k-pop tenha se espalhado pelo mundo com um alcance inigualável e as coleções sejam algo extremamente comum entre seus fãs, muitas pessoas, dentro e fora dessa comunidade, ainda enxergam essa cultura como consumismo. Um dos comentários mais vistos nas redes sociais é o que implica que se os photocards são feitos de papel, por que não somente imprimir? E essa é uma questão que carrega diversas faces e camadas que só podem ser entendidas melhor quando vistas de perto.
Todo mês, virais de hate com essa mesma pergunta ganham destaque em redes como o Twitter e mobilizam milhares de consumidores dessa comunidade a engajarem no mesmo tópico outra vez. Quando pensamos em coleção, talvez você, leitor, associe àquele seu amigo que compra vinil e CD ou a um familiar que coleta moedas e guarda cuidadosamente em uma gaveta especial. Para alguns, as cartinhas de Pokémon da infância ou os álbuns de Copa do Mundo surgem como lembrança, e o que todas essas associações têm em comum? O gosto por guardar. A vontade de manter algo, de se apegar a um item que não é refém do tempo, que está a todo momento ao alcance de uma mão.
No caso dos álbuns da Copa do Mundo, por exemplo, colecionados majoritariamente pelo público masculino, não se vê todos os dias alguém que diga “se é papel, por que você não só imprime?”, e o fato de um papel ter maior valor do que outro traz implicações bem maiores sobre a forma como categorizamos as coisas em caixas estreitas e claustrofóbicas na nossa sociedade. Para meninos, é normal ser fã de jogadores de futebol e gastar com camisetas de time. Para meninas, é histeria gostar muito de um cantor e colecionar papel é uma forma terrível de consumismo.
Quando questionada sobre sua opinião, Lívia relatou: “Eu acho que é polêmico porque, igual você falou, envolve mulheres. Porque, em época de Copa, a gente vai lá, compra adesivo da Copa, álbum de figurinha da Copa. Eu mesma sou uma pessoa que adora figurinha da Copa. Toda Copa, eu vou lá, compro meu álbum e fico gastando com figurinha. Sabe? Ninguém problematiza muito isso. Mas eu entendo que quando entra no parâmetro de mulheres jovens colecionando algo, e é algo que você pode piratear de algum modo, cai muito nessa polêmica de fato, porque as pessoas também não querem entender e também fazem pra render na internet, eu acho. É muito pessoal isso, você coleciona o que pode e também quer colecionar. E assim, o dinheiro é seu. Se você pode dar e ganha seu dinheiro…”
Leila, por sua vez, relata que ainda que seus familiares e amigos sejam receptivos em relação a isso, é inevitável não se ver presa em um mundo que priva mulheres dos seus gostos cada vez mais. “Eu penso que as pessoas mascaram muito o machismo e a misoginia com a pauta de consumismo porque você não vê as pessoas entrando nessa pauta quando é um homem colecionando. Essa pauta só acontece quando é uma mulher colecionando algo que ela gosta, como k-pop, e são tachadas de fanáticas, loucas. É muito mascarado. É bem chato, mas nunca passei por isso.”

Mesmo com entraves como esse, as coleções são pontes para a união de fãs ao redor do mundo inteiro. São diferentes pessoas, nascidas em diversos lugares e com histórias distintas, que se conhecem através dos grupos de venda ou em eventos disso, alguns até nas redes sociais, e formam laços que se constroem fortemente na ideia de comunidade. Pessoas que provavelmente jamais se encontrariam fora do alcance da internet. A busca por um lugar no mundo, um espaço com pessoas que se parecem com você e dividem os mesmos gostos pode explicar o porquê dos fãs colecionarem cada vez mais.
Na visão de Lívia, as redes sociais têm um papel muito enfático nesse boom de colecionadores, e ela mesma publica vídeos relacionados a sua vida de fangirl no Tiktok (@namliseok): “Eu acho que o Tiktok é uma grande ponte de cultura, ao mesmo tempo que a gente consome um monte de coisa que vem do Tiktok e não é só sobre coleção. Esse consumo de photocards também veio muito das coreanas, que faziam vídeo no Tiktok e acabavam aparecendo pra gente porque a gente tá na mesma comunidade.”
As amizades que são encontradas nesses espaços não somente encorajam as pessoas a permanecerem na comunidade, mas estabelece um ambiente de identificação e acolhimento. Lívia e Leila testemunham que puderam conhecer pessoas incríveis através das coleções, e dividir momentos preciosos com esses amigos é também uma forma de colecionar memórias.
“Acho que é também por causa dessa sensação de pertencimento, talvez, porque é muito característico de onde a gente tá, de tá no k-pop e tudo mais. Então acho que vem muito disso, você se sente junto com todo mundo.”
Na contramão desses laços afetivos e dos benefícios que cultivar o gosto por guardar algo pode trazer, surge uma problemática pertinente acerca da falta de sustentabilidade na produção dos álbuns e consequentemente dos photocards junto a eles.
O descarte incorreto e banalizado desses itens, principalmente, é uma pauta de muita importância entre quem coleciona e que não parece haver um consenso ainda. Hoje, cenas de latas de lixo transbordando álbuns e ruas extremamente sujas com objetos descartados, na época de lançamento dos grupos, em países como a Coreia, por exemplo, rodam os quatro cantos da internet e voltam com um alerta para o perigo do consumo desenfreado.
Para Leila, o ato de colecionar deveria ser mais contido do que atualmente é, por parte de alguns fãs e das próprias empresas de k-pop. “Eu sou um pouco contra isso porque as empresas vão visar o capitalismo. Elas querem o lucro delas, então quanto mais o pessoal comprar, melhor para elas. Eu sou contra isso de vir 1 photocard por álbum e a pessoa ter que comprar 100 álbuns para conseguir o que ela quer. É um pouco hipócrita da minha parte porque eu também compro álbum pra pegar photocard, mas comprar muitos álbuns eu sou contra. Não é orgânico.”

Além do impacto ambiental, é necessário observar o quanto esse tipo de comportamento pode influenciar negativamente na imagem dos artistas. E pensar sobre isso desencadeia um questionamento ainda mais profundo do que é a arte enquanto produto do artista e o que ela significa para além do material. Lívia enxerga profundamente as raízes desse problema e lamenta: “A gente entrou num ciclo muito complicado, porque é muito errado ver aquilo daquele jeito, tanto da parte ambiental, porque é um desperdício, quanto pra parte musical, porque é até meio desrespeitoso pro artista. Eles dão muita parte do tempo deles pra construir um álbum e é claro que eles veem os álbuns jogados no lixo, no meio da rua… eu penso muito nisso quando vejo, como eles se sentem. Eu como artista gostaria de ver isso? Quando eu vejo os números de vendas, será que as pessoas realmente compraram o que tá ali? Ou eu faço parte daquilo que tá no lixo?”
A efemeridade da comunidade criada a partir das coleções também é um ponto inevitável a ser questionado após se aprofundar um pouco mais dentro dela. Será que tudo isso irá durar? Aqui no Brasil, o ato de colecionar, antes da pandemia, era restrito a um grupo específico de fãs, geralmente quem acompanhava os grupos desde o início. Junto ao boom do k-pop em tempos de quarentena e isolamento social, uma cultura exclusiva das coreanas e japonesas, em sua maioria, se espalhou para a comunidade brasileira de k-pop e os números rapidamente cresceram.
Como uma supernova, é possível que esse fenômeno passe?
Leila vê a própria coleção como uma forma de se conectar aos artistas que gosta e de se reconectar àqueles que se afastou com o tempo, em um ciclo onde nada é esquecido. Lívia, em um relato muito parecido, nos conta que mantém álbuns do BTS, seu primeiro grupo favorito e do qual foi fã por muito tempo. Esses itens são guardados com o mesmo carinho, mesmo que hoje ela já não se conecte com eles como antes: “Acho que isso é um movimento natural. Aos poucos, as pessoas podem se desinteressar, afinal, nada é pra sempre, né? Eu tenho essa visão comigo. Nada é pra sempre. Eu sei que em algum momento eu vou parar de colecionar porque não vai mais fazer sentido. Eu acho que pode ser passageiro, mas ao mesmo tempo, se a pessoa for muito apegada, assim como eu, não vai se desfazer. Pode ser algo que fique na moda por muito tempo.”
A sensação de acolhimento é o vetor emocional que conecta pessoas como Lívia e Leila ao k-pop e a tantos outros gêneros musicais, mas o ato de colecionar, em particular, é um grande elo para a interação entre diversos grupos que encontram nesse lugar um novo jeito de pertencer ao mundo.
Ainda que o universo dos photocards se expanda a muito além disso, a Prisma te convida a adentrar um pouco mais nessa comunidade emergente e entender, solto do véu de preconceitos e juízos ultrapassados, como fandoms se relacionam dentro e fora da internet, em uma busca por encontrar outro alguém que goste tanto de cultivar memórias (e colecionar papel) quanto você mesmo.
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